Por Antônio Heberlê*

No contexto de uma pandemia, como a que vivemos a partir de 2019 no mundo, e diante dos fatos políticos verificados no Brasil, é preciso diferenciar o que é a normatividade da crítica pela crítica e o que é o senso crítico. Os fatos-limites determinados pela crise do vírus Covid-19 afloraram raivas inauditas e inéditas de todos os matizes. Apareceram muitas falas carregadas de ódios e críticas vorazes aos sistemas, acima e abaixo, à esquerda e à direita mas, também, muitas críticas baseadas em bom senso.

É preciso esclarecer de início que é por meio do senso crítico que se pode buscar os melhores contornos da verdade, questionando e refletindo profundamente sobre cada assunto. A palavra “crítica” vem do Grego “kritikos”, que significa “a capacidade de fazer julgamentos”. Desta forma, o senso crítico prende-se ao desenvolvimento de uma consciência reflexiva diante das coisas, fatos e acontecimentos do mundo.

A omissão, a não criticidade, nos leva a valorizar os algozes, aproveitadores e falsários de plantão. Esses agourentos esperam que as pessoas de bem não digam nada diante da loucura de seus atos para desfilar pressupostos tresloucados e influenciar negativamente a sociedade, transformando nossa vida num inferno. Precisamos ser críticos e levantar a voz sempre e logo no início que algo insano se apresenta na nossa frente, para que não se alastre a falsidade e a loucura social. Afinal, o não crítico, ao não se importar ou não querer se incomodar, admite o ditado popular de que “quem cala consente”.

A doutrina filosófica de Immanuel Kant(1724-1804) dedicou-se a validar a realidade com base nos fundamentos, admitindo apenas aqueles que tenham sido analisados criticamente. Para o iluminista Kant, tudo deve passar pela razão crítica ao se analisar os fatos. O criticismo construiu-se como uma opção metodológica ao racionalismo e ao empirismo, duas doutrinas que há séculos dividiam os estudiosos sobre a maneira pela qual o conhecimento é adquirido. Kant defendia que o conhecimento é resultado da interação entre o objeto de estudo e o sujeito. Portanto, é dessa observação criteriosa que pode nascer a luz, por meio de idéias claras, o que afasta todas as ideias contrárias, nebulosas e equivocadas.

Porém, ser uma pessoa crítica não se tome por agourenta, cinzenta e/ou sisuda. Pelo contrário, a pessoa crítica pensa as situações do mundo e deseja que sejam alinhadas com o que é correto e não com o que é errado. E essa pessoa nada tem de chata, má ou do mal por querer um mundo melhor. O verdadeiro crítico é altivo, feliz e do bem. O criticismo contumaz, sem motivos, é da ordem dos ódios gratuitos, que não levam a nada.

Mesmo os grandes mitos e ativistas revolucionários sempre preservaram a sanidade para além de suas revoltas interiores. “Há que endurecer-se, mas sem perder a ternura jamais”, teria dito o líder revolucionário Che Guevara, parafraseando o escritor espanhol Antonio de Guevara (1480-1545). O que interessa, para as pessoas que pensam e analisam a realidade, é a capacidade de manter o senso crítico, ou a capacidade de questionar e analisar de forma racional e inteligente diante de qualquer situação.

Um ser crítico mantém a consciência do seu papel social, ao focar na capacidade de interpretar racional e equilibradamente os fatos. Por isso, o nosso senso crítico aguçado não pode aceitar a imposição de qualquer tradição, dogma ou comportamento sem antes questionar e verificar à luz da razão. Contra a capacidade livre de se exercer o senso crítico há, logicamente, toda a ideologia dominante, esse conjunto de crenças, valores e opiniões consagradas pelo modelo de operação consagrado pela manutenção do status da política, da religião, dos meios de comunicação ou de outros grupos, que procuram manipular as pessoas para que não questionem; para que aceitem o que lhes for imposto sem ponderar ou investigar a verdade.

Ao senso crítico é importante respeitar o princípio de tornar as ideias claras. O filósofo semiótico Charles S. Peirce escreveu justamente sobre isso, ao dizer que “Uma ideia clara é definida como uma que é apreendida de tal forma que será reconhecida onde quer que se encontre, de modo que nunca será confundida com outra. Se esta clareza faltar, dir-se-á então que é obscura”. O semioticista mostra com clareza o quanto podemos nos enganar ao partilharmos de ideias falsas e inúteis.

Segundo Peirce, algumas pessoas cultivam e se agarram, como um hobby, a ideias completamente equivocadas e vivem sob a sombra delas, como se verdades fossem. É interessante como vimos isso corrente no clamor da pandemia, quando vigorou a insignificância para se defender ideias falsas. Estas pessoas defendem de forma apaixonada ideias sem qualquer fundamento com a realidade, dedicando-lhe a força e a vida, abandonando todas as demais ocupações para dizerem em microfones ou saírem às ruas e defenderem bandeiras irracionais e aqui vão apenas alguns exemplos:

- A terra é plana;
- Não queremos democracia;
- Que volte a ditadura militar;
- Que fechem os poderes da república;
- Queremos um ditador;
- A educação é para poucos;
- Os deficientes atrapalham a educação

Em suma, a iniquidade intelectual é tamanha que somente pode ser traduzida pela obsessão, fruto da irracional ilusão de ter a (sua) verdade e se tornar escravo dela, como carne da sua carne e sangue do seu sangue. Nenhuma reflexão e senso crítico é admitido para essas pessoas, para que possam acordar de um pesadelo e descobrir que estavam enganadas sobre a leitura que fizeram da realidade.

Realidade, que é distorcida para atender interesses os mais diversos e, por isso, a omissão facilita a entrada de aproveitadores e falsários que estão à estreita. Quando nada se diz diante das loucuras de seus atos eles crescem e mentiras e inverdades se somam, ao ponto de se destituir do poder constituído legitimamente pessoas de bem. Isso já aconteceu e não se pode permitir que a mentira prospere novamente, mesmo vestida de nomes outros, como “fake news”.

Então, para finalizar, precisamos manter a nossa voz reflexiva e crítica sempre e, se possível, que ela seja dada logo ao início das insanidades propaladas, fazendo o possível para que sejam desmascaradas. Afinal, o não crítico, ao se calar e omitir, abre a porta do seu lar para um mundo infeliz, para si, para os seus e para os outros.

 

Antônio Luiz Oliveira Heberlê é professor, doutor em Ciências da Comunicação, pesquisador e Vice-presidente do Centro Internacional de Semiótica e Comunicação-Ciseco.