Entrevista - Manuel Dutra - Foto: Reprodução

PERGUNTA: Como analisa a cobertura da mídia brasileira sobre a Amazônia, ao longo dos anos em que tens feito estudos e matérias jornalísticas a respeito da região?

RESPOSTA: O distanciamento geográfico e geopolítico do que hoje chamamos Amazônia, em relação ao Brasil, tem raízes históricas. Antes chamada Grão-Pará, compreendia os territórios hoje denominados Estados do Amazonas, Roraima, Pará, Amapá, Maranhão e Piauí. Era o Estado do Grão-Pará, ao norte, e o Estado do Brasil, ambos obedecendo à coroa portuguesa, porém relacionando-se com a metrópole com elevado grau de autonomia. Em 1774, a fim de centralizar e aumentar o controle colonial, os Estados do Grão-Pará e Rio Negro e do Maranhão e Piauí passam à condição de capitanias e são integrados ao Estado do Brasil, sendo subordinados ao vice-rei, com sede no Rio de Janeiro.

Estabelece-se o discurso sobre “as províncias do Norte”, distantes dos centros do poder colonial, onde se formaria a hegemonia até hoje dominante. Politicamente unidas as duas macrorregiões, permanece ao longo do tempo o distanciamento físico e simbólico, presentificado, nos dias atuais, entre outros dispositivos, nos dispositivos midiáticos, cujos discursos reverberam o lugar de fala produzido nas regiões onde se situam, historicamente, o poder econômico e político do Brasil. Forma-se uma espécie de colonialidade, entendido este conceito, finda relação colonial estrita, como um sistema político, econômico, social e ideológico no qual tanto o domínio político quanto o econômico de um território ou país é mantido, na forma de colônia, por outra nação.

Assim vista, ao menos parcialmente, a Amazônia prossegue como entre à disposição de entes externos, de cujas soluções participa como região tributária. É dessa forma que ela permanece sob um olhar à distância, embora plena de recursos naturais e, ao mesmo tempo, ambiente onde as suas populações tradicionais são invisibilizadas por aquele mesmo discurso hegemônico, contra o qual hoje, mais que nunca, se voltam os povos indígenas e demais grupos interiorizados nas zonas não urbanas. É a busca de produção de um outro discurso, ou mesmo a retomada do discurso que lhes foi ferozmente sonegado desde o século 17.

 

P: Como vê os efeitos desse “olhar à distância” sobre a Amazônia, especificamente de técnicos e outros especialistas que não têm uma vivência dos problemas da região?

R: Os efeitos desse distanciamento simbólico tornam-se presentes nas formas de interpretação dos significados da região para o Brasil e para o mundo. No último 15 de agosto, em entrevista à BBC-Brasil, o ministro do Meio Ambiente como que resume o sentido da Amazônia no presente, como se isso, ou mais ou menos isso não tenha sido o seu significado para o pensamento hegemônico desde séculos. Ao apresentar a entrevista, diz a BBC-Brasil: “Ante o crescente desmatamento no país, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (Novo-SP), diz que a Amazônia só será preservada se forem encontradas "soluções capitalistas" que deem dinamismo econômico para a floresta e gerem renda para os cerca de 20 milhões de brasileiros que habitam a região”.

A fala do ministro coloca os “milhões” de brasileiros ao final de sua locução. Diferentemente de inúmeros estudiosos, entre eles Stephen Nugent, coordenador do curso de Antropologia da Cultura, na Universidade de Londres, falecido há pouco. Um de seus livros traz o esclarecedor título, ainda sem tradução: "Amazonian Caboclo Society, an essay on invisibility and peasant economy". É essa invisibilidade que está presente na maioria dos textos de história da região, atualizados, por exemplo, nos textos midiáticos, assim como nos textos e projetos de “desenvolvimento” da região, bastando perceber – para não retroceder tanto no tempo, o que disse Getúlio Vargas no seu conhecido Discurso do Rio Amazonas, proferido em banquete a ele oferecido pelos grupos de poder de Manaus em 1940. Passa-se por Juscelino Kubitsckeck e sua Belém-Brasília a fim de integrar a “massa venosa” amazônica ao Brasil; passa-se pelos governos militares desprezando por completo a maior rede hidroviária do planeta para abrir duas estradas paralelas ao Rio Amazonas, a Transamazônica e a inacabada Perimetral Norte. E assim por diante, ler projetos de “integração” e/ou desenvolvimento dos governos federais durante décadas, e lá estarão as reiterações que, poderiam ser tidas como inauguradas pelo luxemburguês João Felipe Bettendorf, em 1661, ao travar o primeiro contato com os chefes indígenas da etnia Tupaiú, hoje Tapajós, traduzido em seu sermão pelo português João Correa. Disse o missionário jesuíta, que fora à confluência dos Amazonas com o Tapajós instalar a missão e o poder colonial, no processo de alargamento das fronteiras amazônicas:

 

“Filhos, como eu sou ainda pouco praticado em os estylos destas terras, pela pouca assistencia que em ellas tenho feito até agora, por haver pouco que sou vindo do Reino, desejando eu saber o verdadeiro modo de as governar, ouvi dizer que haveis de ser governados com pancadas como se governam os brutos, por não seguirdes a razão que Deus deu aos homens para se dirigirem por ella; não me posso persuadir que isto seja assim e portanto quero fazer experiência antes de crêl-o. Olhae os Mandamentos da Lei de Deus, todos se fundam em a razão, e quem os seguir deve-se chamar homem racional, e pelo contrario quem não os quer seguir este se póde chamar de bruto, e se deve governar com pancadas como se governam os animaes irracionaes” (Relatado pelo próprio Bettendorf, em sua Crônica).

 

Era a inauguração simbólica do que haveria de vir sobre aqueles povos nos séculos seguintes, até os dias atuais. Retomando a declaração do ministro do Meio Ambiente sobre as “soluções capitalistas”, a contradizê-lo podemos encontrar muitos estudiosos, entre eles o cientista político Elmar Altvater, em seu livro O preço da riqueza: pilhagem ambiental e a nova (des)ordem ambiental, para quem, o que chama de comunicação ecológica não pode confiar nos códigos econômicos”, entre outras razões porque “o desenvolvimento é expansivo do ponto de vista quantitativo, mas os recursos naturais de onde as estratégias de desenvolvimento se nutrem são limitados”, acrescentando que “não podemos nos subtrair com a tese do crescimento com preservação ambiental ou da desvinculação entre crescimento econômico e consumo de recursos naturais”.

 

P: Segundo suas impressões, qual a percepção que os habitantes locais dessa diversificada região têm dos problemas locais, especificamente as populações mais distantes?

R: As percepções estão cada vez mais claras. Hoje, pode-se dizer que os povos indígenas e outros grupos que poderiam ser categorizados como povos da floresta, demonstram a sua percepção pelas formas de luta que empreendem como nunca antes. E não só na Esplanada dos Ministérios, mas dentro das universidades, na produção de obras literárias, na realização de olimpíadas, mas também na batalha diuturna contra os invasores de suas terras por garimpeiros ou grandes empresas, madeireiros, além da solidariedade das elites amazônicas com todos aqueles que continuam reverberando os elementos básicos do sermão do Padre Bettendorf. Os povos da floresta sabem hoje, com clareza, o que lhes acontece e não temem gritar isso em denúncias solenes no Congresso Nacional. Perderam o medo de ser quem são, como ouvi de um jovem Munduruku na mesa de um seminário, quando alguém lhe perguntou: “Vocês ainda têm vergonha de ser índios?” a que o jovem respondeu: “Nós nunca tivemos vergonha de ser índios, nós tínhamos medo, e isso tá passando”.

 

P: Como jornalista, como avalia os processos de apropriação que a mídia, de modo geral, faz das questões amazônicas, no contexto de suas coberturas? Como cobrar da mídia a melhoria nos modos de tratar os problemas da região?

R: A produção da notícia, entendida aqui como qualquer tipo de relato do real observado, analisado e publicado, coloca o jornalista diante de múltiplas visões e múltiplos discursos. Essa experiência leva o jornalista a perceber, além dos objetos que transforma em notícia, como se dá o reconhecimento do seu trabalho incessante a apressado. Quanto às questões amazônicas, como de resto todo discurso midiático não constrói o fato a ser coberto, a construção se dá no relato do fato. A mídia apropria-se de elementos pré-existentes no imaginário coletivo, elementos fundantes daquele discurso historicamente construído. A reiteração midiática, como vemos em Michel Foucault quando ele fala do discurso da ciência, aproveita não o mesmo discurso histórico, porém o reconstrói.

Cria-se o mito midiático, ou seja, uma forma de significação, como vemos em Roland Barthes, segundo o qual o mito é uma recuperação do discurso histórico que é transformado em verdade presente a partir de uma matéria já trabalhada.

Dessa forma, como se diz no senso comum, a mídia não inventa os fatos, ela os reinventa, mantendo seu núcleo discursivo central. Assim se dá a apropriação que retorna, modificada, ao universo receptor de suas matérias jornalísticas.

Como cobrar da mídia, como pede a pergunta, uma melhoria nas coberturas de questões amazônicas? Uma resposta possível inclui uma audiência crítica, um processo educacional que elimine ou atenue a recepção passiva, como de fato estão fazendo de modo crescente os povos indígenas e demais grupos categorizados como povos da floresta, tornando-se, em vez de meros receptores, em interlocutores ativos, mostrando, por exemplo, que a Amazônia não se resume a natureza, mas também a cultura, uma cultura diversificada e rica, depositária de saberes longamente gestados na experiência coletiva.

 

P: Quais conexões que existem entre o tema tratado por sua fala com a proposta de temática sugerida pelo CISECO?

R: O macro-tema “Comunicação, Aprendizagens e Sentidos: difusão, mediação, interfaces, bifurcações” me parece intimamente relacionado com as questões tratadas nesta entrevista. A aprendizagem se dá pelo crescente senso crítico que permite a apreensão de sentidos produzidos pelo “branco”. Populações tradicionais e mesmo as populações urbanas, gestam um senso crítico no interior de suas próprias culturas secularmente violadas pelo discurso hegemônico; não se trata, portanto, de uma espécie de concessão dos dispositivos hegemônicos, inclusive da mídia.

Hoje já se percebe a proliferação de espaços na internet, obra exclusiva dos povos indígenas e demais grupos ribeirinhos, sem interferência de “brancos”. Da mesma forma surge, por exemplo, em Manaus e outros centros livrarias indígenas, festivais de arte e esporte, nos quais esses povos vão reescrevendo a sua história, bem diferente daqueles relatos tradicionais de escritores e historiadores que não fugiram, na essência de suas obras, das visões dos indígenas como seres inferiores. Hoje eles se tornam capazes de perceber que tipo de educação e aprendizagem lhes foram impostas ao longo dos séculos. Os sentidos produzidos pela sociedade envolvente vão sendo hoje rapidamente decodificados, rejeitados e adaptados a seu modo de ver o mundo. 

 

P: Qual o papel, em termos de comunicação, de instituições científicas na construção de protocolos de aprendizados e de compartilhamento de conhecimentos junto a públicos específicos de suas políticas e ações?

R: O sociólogo e jornalista Lúcio Flávio Pinto, um dos mais respeitados conhecedores da Amazônia, entrevistado por mim há algum tempo, perguntei se ele considerava a sua atividade como jornalismo científico. Sua resposta:    “Uso a ciência para dar maior consistência ao meu jornalismo. Se escrevo sobre hidrelétricas, estudo como é que elas são construídas, como funcionam, seus efeitos. Se é sobre desmatamento, estudo a geografia da região, a floresta, as consequências da sua derrubada, o significado econômico que elas têm. Se falo de mineração, a mesma coisa: procuro me familiarizar com a geologia, a economia mineral, etc. Se quero saber como está uma empresa, vou analisar o seu balanço. Se quero saber como age um governo, consulto o Diário Oficial para verificar seus atos. O conhecimento científico é um dos meios para chegar à verdade, assim como são meios a entrevista, a visita a locais”.

Todo ser humano é, por natureza, curioso, deseja saber do mundo que o rodeia. Sem conhecimento não temos como nos situar no mundo. Isso pode e deve ser feito com a contribuição do jornalismo, seja ele rotulado de científico ou não. Desde sempre as sociedades humanas buscaram o conhecimento dentro das particularidades do lugar e do momento de suas existências. Com o avanço da ciência, esse conhecimento tende a se aprofundar e assim possibilitar melhores condições de vida, mas também mais desgraças, como se vê com a contribuição da ciência para a produção de armas inimagináveis no passado. Mas a mesma ciência produz hoje remédios e tecnologias outras que nos oferecem melhores chances de sobrevivência e bem-estar.

Gerar interesse pelo conhecimento científico em nossos leitores é algo que depende, no caso do jornalismo, de um interesse anterior, do próprio jornalista. Se este não tem esse interesse, não haverá como motivar os leitores. A notícia sobre ciência pode e deve ser tão útil e agradável de ler como sobre qualquer outro assunto, desde que sejamos competentes para produzi-la. Precisamos nos insurgir contra certos mitos, como aquele do cientista abilolado, o cientista maluco, etc., como se tal atividade fosse exclusiva de pessoas incomuns. O que o jornalista precisa, repito, é compreender o trabalho de pesquisa, entender seus significados, conceitos e a sua utilidade.

Creio que muitos dos jornalistas que se dedicam a essa área trabalham em institutos de pesquisa, como assessores de imprensa, diversos deles prestando um bom serviço à comunidade. Mas o ideal é que a própria imprensa incentivasse a reportagem autônoma sobre ciência, livre das regras de uma simples assessoria. Assim, os leitores poderiam informar-se por meio de textos interpretativos, com opiniões diversas sobre uma nova descoberta científica, por exemplo, e não apenas textos sobre um determinado grupo de pesquisadores que fez isto ou aquilo. Quando a instituição de pesquisa científica decide compartilhar os resultados de seu trabalho junto à comunidade, deve buscar o trabalho do jornalista, prepará-lo para a construção da notícia/reportagem produzida com conhecimento tanto das exigências jornalísticas quanto, por exemplo, a compreensão dos relatórios gestados nos laboratórios de pesquisa.

 

Mais de Manuel Dutra: https://blogmanueldutra.blogspot.com/2016/08/a-mentira-que-fez-amazonia-virar-brasil.html?fbclid=IwAR2qHVYpc29YBS2ATvPOPLIGsh3acpyi8Unj3QQLtW2U9nw9FQ5FRsv_iGA