Foto: Arquivo pessoal do entrevistado

 

“Filho, você só tome cuidado com os pumas!” O alerta de dona Ester é lembrado nos primeiros segundos do documentário “Operação Carretera Austral” que apresenta a ciclotrajetória vivenciada, narrada e registrada por Demétrio de Azeredo Soster. O aviso da senhora chilena é um dos aspectos a nos conduzir durante o relato que repercute em produções acadêmico-literárias, onde Soster reflete sobre as relações do indivíduo com alguns processos tecno-discursivos de midiatização. Para tanto, o pesquisador e professor no curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul, ressignificou sua experiência cicloturística na interação entre sujeito, bicicleta, rodovia e dispositivos técnicos ao relatar sua experiência enquanto um “narrador midiatizado”.

No documentário, Soster revela situações que ocorrem antes, durante e após a trajetória. Apresenta belas paisagens, interações com pessoas de diferentes nacionalidades que percorrem o mesmo trajeto e relata dificuldades que encontrou no caminho. A narrativa é intercalada entre memórias e momentos “reais”. Dessas práticas, resultam circuitos que geram novas relações derivadas de contatos com outros cicloviajantes e da própria estrada, bem como rupturas, representadas pelos contratempos expostos por Soster. 

A “Operação Carretera Austral” sucede de projetos desencadeados tanto por um propósito pessoal como de conhecimentos acadêmicos, conforme relata o pesquisador. E, desta feita, transformaram sua aventura em reflexões científicas.

 

PERGUNTA: Como surgiu a ideia? Por que a Carretera Austral? 

RESPOSTA: Na verdade, foi um (bom) acaso. Eu estava me preparando, ainda em 2018, quando retornei do Chile (Operação Valparaíso), para a próxima viagem, pensando no ideal de realizar uma grande viagem de bicicleta por ano. Minha vontade, por aqueles dias, era descer em La Paz, na Bolívia, e, de lá, me tocar para Cusco, no Peru, onde encontraria minha família, visitaríamos Machu Picchu, voltando então ao Brasil. Fiz pesquisa, tracei rotas, mas aquela possibilidade não estava me emocionando. Foi aí que me perguntei: “E se eu fosse para o Sul, por onde eu poderia ir?” Não sei em que momento aconteceu, acho que das leituras que fiz, conversar que tive, mas, quando me dei por conta, estava com com o nome “Carretera Austral” incrustrado em minha mente. Apaixonei-me imediatamente pela possibilidade e passei a estudar o roteiro, pensando em percorrê-lo em janeiro de 2019, quando entraria em férias.

 

P: Qual a conexão entre sua experiência na Carretera Austral e seus estudos sobre midiatização?

R: Categorizo esta conexão como “semioses cicloturísticas”. Explicitei este conceito pela primeira vez em agosto de 2018, em um seminário na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Semioses cicloturísticas, a partir de uma livre apropriação do conceito seminal de Verón (1980), são, grosso modo, os sentidos que emergem desde o momento que que usamos bicicletas para fazer turismo. As semioses cicloturísticas, ou “de bicicleta”, dividem-se, grosso modo, em acadêmicas, literárias, orgânicas e sistêmicas. É por meio das semioses acadêmicas, na perspectiva do cicloturismo, por exemplo, que emerge a produção de conhecimento científico (artigos, conceitos etc.) em torno do tema. As orgânicas têm a ver com as viagens de bicicleta propriamente ditas. Elas são literárias quando emergem à superfície discursiva na forma de narrativas de viagens, caso dos livros e dos documentários sobre o tema. No que tange às semioses sistêmicas, por fim, dizem respeito a eventos, encontros, mostras fotográficas etc. cujo tema seja o cicloturismo.

 

P: A “midiatização das narrativas da bicicleta”, segundo sua perspectiva, está nas formas de registrar a cicloviagem, principalmente através de tecnologias digitais as quais permitem que a experiência “circule” em outros espaços e em tempo real. De que forma isso repercute na prática? Quais as vantagens e desvantagens?

R: Vou pensar a midiatização das narrativas de bicicleta a partir do momento em que elas se transformam em fenômenos midiáticos, adquirindo autonomia e persistência, mas, também, gerando historicidade neste percurso. Estabelecem-se, dessa maneira as condições para que sejam afetadas pela processualidade da midiatização. Pensar a midiatização das narrativas de bicicleta implica subsumir, portanto, como sugerido no enunciado, que as mesmas se estabeleçam a partir da interposição, entre os ciclistas, as bicicletas e suas viagens, de dispositivos midiáticos, mas, também, pela instauração, neste contexto, de novos processos interacionais de referência. Em palavras mais simples, nestas circunstâncias, tão importante quanto o viajar de bicicleta é registrar o vivido, tornando-o fenômeno midiático, transformando e sendo transformado nesta relação a partir do momento em que passa a integrar a discursividade midiática.

 

P: Conforme descreve em seu texto apresentado no Pentálogo IX do CISECO, o “corpo significante”, constituído por bicicleta-ciclista, toma uma proporção diferente na medida em que produz novos sentidos ao trajeto percorrido, pois passam a ser inerentes ao cenário/rodovia. Como essa transformação se manifesta e se concretiza?   

R: Em minhas reflexões mais recentes, tenho observado, na midiatização das narrativas de bicicleta, alguns fenômenos interessantes. Um deles diz respeito ao potencial transformador destas. Isso se dá, no diálogo com o Verón leitor de Peirce, na ordem da terceiridade, ou seja, quando, transformadas em fenômenos midiáticos, adquirindo, portanto, autonomia e persistência, passam a estabelecer relações, transformando e sendo transformadas nesse percurso. A superfície discursiva dos livros, relatos em sites e filmes que temos analisado está repleta de marcas textuais e imagéticas descrevendo transformações que ocorreram nestas circunstâncias, de onde o axioma “a bicicleta transforma, geralmente para melhor, as pessoas”.

 

P: Durante a viagem você conheceu pessoas de diferentes lugares e em contextos diferentes, como outros ciclistas, moradores locais, donos de hospedarias. Como você interpreta a intervenção destes atores na experiência? Em que medida eles mudaram suas convicções iniciais (se existiam) sobre a viagem? 

R: Uma cicloviagem é, em essência, permeada por transformações as mais diversas. Nos transformamos, por exemplo, quando, por meio de uma tecnologia branda e de baixo impacto ambiental, caso das bicicletas, nos aventuramos por caminhos desconhecidos e em uma perspectiva autossuficiente. Há transformação, também, quando nos encontramos com outras gentes, ciclistas ou não, e, neste encontro, estabelecemos relações. Se isso se dá dessa forma, e aqui com Bergson, é porque, de certa maneira, uma viagem de bicicleta imita o ritmo da vida, ou seja, transforma por meio do movimento. Eu diria que não houve, no caso específico de minha viagem à Carretara Austral, nenhuma mudança provocada por este ou aquele autor, mas um processo sistemático e ininterrupto de reconfiguração pessoal a partir das experiências de contatos os mais diversos que se sucederam ao longo dos 25 dias em que estive na estrada.

 

P: Em um trecho do vídeo você comenta que tomou decisões, seguiu outros caminhos ou buscou conhecer determinados lugares, a partir de sugestões de outras pessoas. Como você descreve esta experiência, que aparentemente estava fora do seu roteiro, enquanto “novos circuitos”?

R: Tem a ver com as transformações aludidas na pergunta anterior. Ou seja, havia, claro, um plano – eu planejo muito minhas viagens, e um roteiro a ser seguido. Mas os “atravessamentos” e “interposições” que se deram ao longo do percurso eventualmente fizeram com que eu mudasse de decisão, optasse por outro caminho, e sempre que isso aconteceu foi bom.

 

P: No documentário você fala a respeito do livro em que faz relatos do trajeto. Qual o foco diferencial entre a obra literária e a audiovisual e em que sentido poderá contribuir para os estudos em comunicação?

R: O livro, homônimo, já está pronto. Se, no documentário, trabalhei mais os aspectos emocionais da viagem, ou seja, o que senti, no livro eu abro espaço para reflexões, informações, dicas e outros elementos que são mais afeitos a um suporte impresso. No que toca à sua contribuição para os estudos em comunicação, ele se encaixa na semiose literária, ou seja, como narrativa de viagem mesmo; não tem, portanto, essa preocupação. Os aspectos reflexivos ficam por conta do que eu tenho produzindo em termos acadêmicos, como o desenvolvimento do conceito de “narrativas de bicicleta”, ou “cicloturísticas”, a midiatização destas narrativas, e por aí em diante.

 

P: Gostaria de acrescentar mais algum ponto?

R: Pegando como gancho o conhecimento produzido a partir das narrativas de bicicleta, estou desenvolvendo, a partir delas, um conceito que chamo de “narrador midiatizado”. O narrador midiatizado sucede o narrador moderno, de Benjamin, e o pós-moderno, de Santiago, e se interpõe nestes modelos de narrativa como um narrador multifacetado e plurivocal; ora moderno, portanto afeito a juízos e lições de moral; ora pós-moderno, que assiste a tudo “da arquibancada”. Pensar a reconfiguração do conceito de narrador pelo viés da midiatização implica subsumir que, em decorrência da processualidade desta, e da interposição, na discursividade midiática, de circuitos múltiplos, estamos diante um novo tipo de narrador cuja identidade é afeita, antes, a uma processualidade que a um lugar situacional, porque em constante transformação. É o que se infere, ainda que seminalmente, das narrativas de bicicleta.

 

 

 

O vídeo e artigos produzidos por Demétrio de Azeredo Soster sobre cicloturismo e midiatização podem ser encontrados nos links abaixo:

 

•Documentário

 

“Operação Carretera Austral”: https://www.youtube.com/watch?v=dCve_i6Z6J4

 

•Artigos

 

“O cicloturismo, o jornalista e a midiatização das narrativas da bicicleta”. In: CASTRO, Paulo C (org). Circulação discursiva e transformação da sociedade. Campina Grande: Eduepb, 2018. Disponível para download:

http://www.ciseco.org.br/index.php/noticias/373-livro-circulacao-discursiva-e-transformacao-da-sociedade

 

“O cicloturismo, o jornalismo e a midiatização das narrativas de bicicleta”, 15º SBPJor, ECA-USP, São Paulo, nov/2017: http://sbpjor.org.br/congresso/index.php/sbpjor/sbpjor2017/paper/viewFile/610/316

 

 

 

 

Soster também tem publicado um livro sob a temática das cicloviagens, numa espécie de incentivo ao leitor, para que este amplie o leque de possibilidades, vínculos e significações ao viajar.

 

•Livro - Narrativas de viagem/Travel narratives

 

Sinopse: “Neste livro, caro pesquisador, cara pesquisadora, você encontrará, de forma bilíngue – ora em inglês, ora em espanhol – e disposta ao longo de 20 capítulos, mais que uma tentativa de interpretação do que entendemos por narrativas de viagem, e sua aplicação, uma espécie de mapa que nos permite delimitar, conceitualmente, o estado da arte das discussões em torno do assunto. Como todo mapa, e considerando o que dissemos no início desta apresentação, deve ser lido antes como indicativo de um caminho passível de ser seguido do que como a tradução de um todo, deixando, desta forma, espaço para novas descobertas, para novos rumos a serem seguidos.

Do mesmo modo como as próprias maneiras de viajar e estabelecer algum tipo de vínculo com os lugares e povos têm se transformado e ressignificado entre diferentes culturas e diferentes épocas, também os modos articular e organizar esteticamente essas experiências em forma narrativa mudam, conforme veremos neste livro. No entanto, permanece a constante do contato, da alteridade, da descoberta do outro, da transformação do não-lugar, do espaço de passagem, em uma ambiência prenhe de significados” (excerto da apresentação dos organizadores).

Organizadores: Demétrio de Azeredo Soster e Mateus Yuri Passos

Editora: Catarse

Nº de páginas: 556 p.

Ano: 2019

Link para download: http://editoracatarse.com.br/site/wp-content/uploads/2019/09/Narrativas_de_viagem_Travels_narratives_Vers%C3%A3o_Concluida.pdf

 

 

 

 

Demétrio de Azeredo Soster é pós-doutor pela Unisinos. Professor-pesquisador do PPG Letras – Mestrado e Doutorado, da Unisc. Organizador de 13 obras acadêmicas nas áreas de Comunicação e Letras e é autor de outras dez na área de literária. Coordena a Rede de Pesquisa em Narrativas Midiáticas Contemporâneas (Renami), ligada à SBPJor. É editor da revista Rizoma: midiatização, cultura, narrativas - Qualis B2, e diretor-editorial da Editora Catarse Ltda. Sua pesquisa se divide entre os eixos de Midiatização, Jornalismo e Narrativas.

 

   

Fotos: Arquivo pessoal do entrevistado