Antônio Luiz Oliveira Heberlê

 

Comunicação está muito mais condicionado ao que as pessoas fazem com o que percebem do que com o esforço de convencer dos que falam. Pretendemos mostrar aqui contradições relativas ao conceito de comunicação social, o que se apresenta para a sociedade pelo que se expressa normalmente nas mídias (rádio, televisão, jornais e internet). Inferimos que esta forma de expressão mediada, que virou negócio, desfavorece a formação de cidadanias, de consciência social diante dos fatos e por isso, neste contexto, se desprende do conceito de comunicação. A esse conjunto caótico de dados fornecidos freneticamente pelas mídias podemos nomear de “informação” e não de comunicação, eis que o processo comunicativo implica interação, relação, definições claras e estabelecimento de diferenças. A informação circulante é despida de análise crítica, profundidade e checagem criteriosa que leve à validade da propagação. A comunicação, ao contrário, resguarda compromisso com os sujeitos em interação, com suas falas e demandas e, por isso, tem o potencial de transformar, de forma quase revolucionária, ao colocar frente a frente os sujeitos e o resultado de suas opiniões e decisões.

http://ciseco.org.br/index.php/25-noticias/409-a-pandemia-e-o-compromisso-social-e-transformador-da-comunicacao

 

As guinadas do jornalismo

Há mais de 80 anos, pelo menos a partir dos anos de 1940, os pensadores da área da comunicação social se debruçam sobre o papel da comunicação na sociedade. As primeiras investidas interpretativas de relevância, com amplo desdobramento na formação de novos comunicadores, tem origem nos estudos de professores norte-americanos. Teorias da psicologia social, da propaganda e do direito foram base para tais análises e interpretações. Uma das obras de impacto deste período inicial é do psicólogo social Harold Lasswell, um texto de seis páginas onde o professor da Universidade de Chicaco descreve a estrutura e a função da comunicação na sociedade.

Para ele, uma forma eficiente de descrever esse processo seria responder a cinco questões básicas:

Quem?

Diz o que?

Em qual canal?

Para quem?

Com quais efeitos?

            Com esses pressupostos lineares fundamentados na similaridade com a biologia, Lasswell influenciou o jornalismo no mundo inteiro, com reflexos até hoje (Wolf, 1985). A produção de informação, de forma objetiva, direta, rápida, isenta, disponibilizada nos canais de maior projeção na sociedade é o ideário dos jornalistas em todo o mundo. Eles produzem “informação”. O lema das grandes TVs de notícias é “informação com independência”. Há um culto à isenção e neutralidade na produção das notícias, como se isso fosse possível, como se toda a produção humana não envolvesse uma ideia em seu entorno (ideologias), adoção de perspectivas que apagam outras, por vezes as mais importantes para a sociedade. Enquanto humanos agimos de acordo com interesses, sempre há motivações, elas são inescapáveis.

Na formação dos comunicadores um dos temas elementares deveria ser justamente psicologia do comportamento, na perspectiva semiótica, histórica, sociológica e antropológica, mostrando como é infinito o processo que leva ao que chamamos de realidade ou que imaginamos que seja a verdade. São com essas materialidades: a versão dos fatos e a verdade sobre os conteúdos, que o jornalista trabalha no dia a dia. Mas é interessante o quanto falta de reflexão sobre a tangência da sociologia da comunicação com outras ciências correlatas, fundamentais para que se compreenda o contexto e se possa interpretar o melhor texto.

            Passou-se muito tempo com pouca ou nenhuma crítica no processo formativo dos comunicadores nas universidades, menos ainda na atuação junto aos meios e veículos de imprensa e os resultados não são animadores. O resultado tem sido um comportamento passivo, por vezes deplorável da ação dos comunicadores enquanto pessoas que operam com informação a fim de gerar conteúdos, descrever e reproduzir situações “sociais”.

            Um dos grandes problemas da produção de conteúdos dá-se pela supervalorização do emissor e foi essa condição que levou a perspectiva analítica a descrever com riqueza de detalhes esse polo ao longo deste primeiro ciclo (que não acabou) do jornalismo. Entretanto, ao aprofundar-se no estudo do processo da comunicação na sociedade descobre-se que o polo mais importante, aquele que decide e valida esse processo, é o da recepção. São os receptores que ofertam sentidos ao que é apresentado como prato-pronto pela mídia, como notícia. Aquilo que os receptores percebem como válido é o que mais importa, pois as tomadas de decisão da maioria - que podemos chamar “opinião pública”- pode afetar toda a estrutura social.

            As eleições nacionais dos países talvez seja o melhor exemplo da formação do imaginário a partir daquilo que é apropriado pela população a partir da mídia. Entretanto, a mídia não é a toda poderosa como se imaginava inicialmente, quando se chegou a pensar que fosse uma “agulha hipodérmica” tal a sua ação profilática no corpo social. Embora seja a fonte mais volumosa de informes, a mídia não define a situação, já que as interações sociais e os valores assentados pelas instituições influenciadoras, como família, igrejas, seitas, culturas regionais e partidos, são os grandes ratificadores finais dos comportamentos.

            O advento das mídias digitais, o cyberespaço consagrado a partir dos anos 2000, trouxe outro importante e ameaçador componente para a tarefa informativa do jornalismo tradicional. As novas mídias agora “sociais”, abrem espaço para a apresentação de conteúdos por qualquer pessoa que tenha a disposição um aparelho receptor e ao mesmo tempo transmissor de um para um ou para muitos. Os famosos “smartphones”, aparelhos que se pode levar a qualquer lugar e fazer uma transmissão original e primeira do acontecimento fez tremer as bases do jornalismo-verdade.

            A narrativa dos fatos por especialistas em comunicação se dobra às imagens que proliferam dos lugares mais inusitados. Estes materiais é que emergem para um tratamento prioritário por parte dos jornalistas. Eles passaram a ter obrigações adicionais de análise e não mais de apresentação, já superada pela manipulação dos dispositivos, agora nas mãos da sociedade.

            Diante de perda da sua matéria prima principal, que é de estar no local dos fatos como “testemunha ocular da história”, como apregoava o Repórter Esso nos anos 50 e 60 do século passado, e de lá transmitir com originalidade e primazia, a informação jornalística precisou se reinventar. Nos últimos 20 anos o jornalismo de análise, de opinião e de síntese passou a habitar algumas redações, meio sem jeito para a coisa. Também se retoma, na TV especializada, algo perdido do início do jornalismo de massa, da virada do séc. XIX para o XX. Na época jornais e rádios se dedicavam a grandes reportagens e laudatórias análises ao apresentar as informações. Hoje se tenta retomar esse valor mais pelo tempo dedicado à narrativa de fatos inusitados (enchentes, quedas de aeronaves, pandemia, etc) do que pela análise de causas e consequências.

 

A Covid 19 e o comportamento do jornalismo

            Fato inusitado e surpreendente, a pandemia do Covid 19 parou quase tudo no mundo a partir do início de 2020, com consequências diversas em vários níveis. O jornalismo não escapou a essa condição especialíssima de convivência social e adicionou um ingrediente a mais na reflexão sobre os comportamentos entre a sociedade, as mídias e as políticas públicas que envolvem a pandemia.

            Como dissemos, toda fala, discurso, conteúdo, não escapa ao posicionamento e ideologia de seu produtor e visibiliza seu processo produtivo, de forma que o argumento da isenção é falacioso e invariavelmente requisitado para proteger minoritários grupos de pressão.

            A Pandemia trouxe consigo o desafio de consagrar a mídia como mediadora dos diversos conteúdos sobre o controle da doença ou fazê-la refém dos diferentes discursos, carregados de ideologias partidárias, geopolíticas e científicas. Acreditamos que o jornalismo perdeu essa batalha para o segundo grupo e transformou-se numa barata tonta, sem saber exatamente para onde ir. Não é uma tarefa fácil fazer a seleção do que entra nas redações e do que sai nas notícias sobre um vírus letal e em especial do que tem ou não validade ou fundo de verdade do ponto de vista científico.

            De todo modo, nesse contexto não há lugar para a “neutralidade”, pois nos limites impostos pela Pandemia do Covid 19 os fatos se agigantam com o tamanho do problema a tal ponto que o jornalismo precisa ser, no limite do possível, fiel aos acontecimentos. No limite, também, precisa se posicionar diante do falso e do verdadeiro, elegendo o que é notícia e o que não é. Precisa dizer de que lado está e essa não é uma tarefa fácil para uma atividade secularizada, tradicional e condicionada pelos princípios e normas funcionalistas do modelo de Harold Lasswell.

            Não basta um parágrafo inicial (o lide) e breve e “isentas” explicações sobre a letalidade do vírus que respondam questões norteadoras do positivismo jornalístico para dizer à sociedade o que acontece. O jornalismo num mundo caótico imposto pela pandemia precisa entrar nos desdobramentos, avisar dos perigos e em especial mostrar comportamentos indispensáveis da sociedade para evitar a progressão pandêmica.

            O jornalismo da pandemia precisou lidar com o interstício das noticias onde existem pressões políticas, comerciais e científicas, além de culturais e religiosas. Ao apreciar as informações que chegam com as marcas discursivas dos campos sociais nas redações, o jornalismo precisa avaliar as pressões e tomar posição. Afinal, cabe à imprensa editar, cortar, destacar ou obscurecer as informações em seus noticiários.

            Como todo o mundo, comunicadores são afetados direta ou indiretamente pela pandemia em seus cotidianos, em sua vida prática, fora das redações. No momento em que os noticiadores podem virar notícia há um mecanismo interessante nos comportamentos e isso se expressa com mais clareza nos canais especialistas de notícias.

            Não raro se vê o comunicador exercendo um papel efetivamente “social” ao alertar, orientar e advertir sobre as consequências da falta de atenção das pessoas em relação à pandemia. Virou um mantra em diferentes canais de TV as recomendações sobre uso de mascaras, álcool em gel e distanciamento social.

            Em alguns casos, muito curiosos, vê-se o posicionamento de alguns comunicadores na direção do afrouxamento às recomendações de saúde pública. Mais curioso ainda observar a crítica instantânea dos seus colegas, corrigindo o “desvio de conduta”, tudo ao vivo, ficando claro para a sociedade que nesta classe profissional os embates apenas ratificam o que se dá no senso comum da vida pública. Entretanto, o jornalismo do senso comum não ajuda neste momento, é preciso olhar o caso do alto, como especialista, para efetivamente contribuir.

            No início de 2021 dois jornalistas da Globonews (emissora especializada em jornalismo, ligada à Rede Globo de Televisão), protagonizaram um episódio emblemático ao discutirem o mérito do distanciamento social durante as festas de final de ano. O argumento de um é que as pessoas que precisam trabalhar durante a pandemia quebram a regra do distanciamento e por isso a aglomeração estaria “autorizada” nos momentos de lazer destas pessoas. O outro, ao contrário, mostrava a relevância de observar as regras de distanciamento em qualquer circunstância, advertindo sobre a observância radical às orientações da saúde. A apresentadora de plantão tratou de colocar água fria na fervura (OBSERVATÓRIODATV, 2021).

            Neste plano, do jornalismo, não há como mascarar os comportamentos quando se trata de um fato altamente relevante. Críticas veladas aos posicionamentos de alto dirigentes, especialmente dos EUA e Brasil, inundaram os textos jornalísticos pelo mundo. Mesmo órgãos muito conservadores, aqueles que historicamente exaltam sua “imparcialidade” como valor, colocaram à frente o interesse público. Estes, os ditos imparciais, são os mais retrógrados, porque se embasam na neutralidade para mistificar conteúdos há muito tempo.

A pandemia, ao mexer com a vida das pessoas, e entre elas a dos familiares dos próprios jornalistas, parece desobstruir os caminhos que levam à dimensão “social” da comunicação. Oxalá este seja um aprendizado e um legado para o futuro desta profissão.

Quando a morte bate à porta

            Em função do avanço dos diferentes plataformas digitais de mídia e sua aderência à vida cotidiana, é comum atribuir o caótico mundo da informação ao problema de comunicação. É preciso, portanto, separar bem os conceitos e tentar entendê-los em esferas próprias. No caso da pandemia da Covid 19, por exemplo, o alto fluxo de informação divulgado não necessariamente levou à decisões das pessoas sobre o que fazer diante da doença. Pelo contrário, a contradição emanada das fontes apenas deixou a população mais confusa e sem saber em quem acreditar.

            Esse é um problema grave da imprensa, quando ela se dedica a apenas emitir informes, sem análise crítica, sem base, sem comprovação, o que é um dever primário da prática jornalística. Ou seja, informações inverídicas, mentirosas, sem base científica, deveriam ser exortadas pelo bom jornalismo. Entretanto, elas ganham espaço, se propagam e viram vocábulos elegantes, da moda, para a população como “memes”, “fakes”, etc.

Numa pandemia de dimensões como esta do Coronavírus, o papel da boa comunicação deveria ser o sustentáculo na formação do imaginário sobre a doença. Não o é, infelizmente. Falta à imprensa a análise criteriosa que leva a informação embalada em cenários, contextos, implicações, comprovações, fatos. O que se observa é o dado, a informação crua, como a divulgação de número de infectados e número de mortes, o que banaliza os fatos a ponto de as pessoas não olharem mais, não quererem mais dados, todo dia. A insensibilidade diante da tragédia de milhares de mortos pela pandemia se banalizou no senso comum. Somente quando a morte bate na porta é que as pessoas pisam no chão da realidade e admitem que negligenciaram, foram imprudentes e deixaram as coisas acontecerem bem ali ao seu lado.

Evidente que não se pode atribuir toda culpa do desastre na condução da pandemia à imprensa, mas não podemos fechar os olhos para o que ela poderia ter feito e ainda pode. A comunicação tem o dever de bem informar, contextualizando e mostrando para que os fatos fiquem evidentes na mente das pessoas e assim possam tomar posição diante da realidade. Mais do que apenas colaborar para a circulação de dados, cabe à comunicação a análise crítica, a profundidade no tratamento das questões estabelecendo crivos, diferenças entre um e outro discurso.  

Quando a imprensa dá destaque para atos absurdos de lideranças políticas, sem estabelecer contraponto, ofertando o mesmo tempo e a mesma relevância para o contraditório, colabora para que as pessoas apenas zombem da situação e se desinteressem pela questão de fundo. O site “Aos Fatos”, especializado em análise da mídia e da política mostra que desde a sua posse, em janeiro de 2019, o presidente o Brasil deu 2.187 declarações falsas ou distorcidas em discursos, entrevistas, postagens nas redes e encontros com apoiadores. De acordo com o contador de AosFatos Bolsonaro recorreu a informações enganosas três vezes ao dia nesses dois anos de mandato.

A quantidade de declarações checadas em 2020 chegou a 3.382, tendo como fontes praticamente todos os veículos de imprensa e também os próprios veículos da presidência. “As transmissões semanais no Facebook, principal estratégia de comunicação do governo com apoiadores, concentraram a maior parte das declarações enganosas dos últimos dois anos: 30,7% das frases checadas como falsas ou distorcidas foram extraídas das lives feitas pelo presidente. Logo em seguida no ranking aparecem as entrevistas, com 28,9% do total de desinformação verificada” (AosFatos, 2021).

Fonte: AosFatos, 2021

 

 

 

Pandemia não é para os fracos na tarefa de produzir conteúdos. O tamanho da pauta dita a forma de tratá-la, para que não restem dúvidas do papel social da comunicação junto à sociedade. Por isso, é curioso e dramático observar que as informações sobre a pandemia foi a mais tergiversada e distorcida pelo próprio Presidente da República.

 

Considerações finais

A comunicação deve, sim, ser compromissada com os sujeitos, com suas demandas e por isso precisa ser transformadora, quase revolucionária, expondo fatos, condenando mentira, mostrando de forma crua atitudes de risco diante de uma pandemia. Condenar os deslocamentos, o não uso de máscaras e a falta de higiene, por exemplo, podem colaborar para se evitar consequências incontornáveis para todo o planeta e não apenas para os autores de tais comportamentos, já que a circulação incontrolada do vírus é o grande problema. Se as pessoas não estão interessadas em se proteger e proteger o outro isso deve ficar claro, transparente na condução da pauta. A imprensa precisa se posicionar entre a mentira e verdade e deve ficar ao lado do que mais se aproxima do que seja essa verdade. Não se trata de ato ideológico, político ou panfletário, é um dever de quem jurou prestar um serviço criterioso na sociedade onde vive, sem misticismo, sem mistificação.

Uma possibilidade de superação do positivismo jornalístico talvez seja fazer outras perguntas ao produzir e reproduzir as informações, tais como:

- Esta informação é verdadeira, pode ser checada onde?

- para que serve a divulgação desta informação?

- quem esta informação ou conhecimento atende?

- quais as implicações decorrentes desta informação?

- esta informação melhora ou transforma a realidade das pessoas?

- há possibilidade de empoderamento social com esta informação?

- como as pessoas podem livremente acessar e usar estas informações?

- quem se responsabiliza por estas informações?

De acordo com a situação outras perguntas podem ser agregadas, no sentido de produzir informação que tenha relevância e tenha efetivo cunho de verdade, contribuído para a função social da comunicação.  

 

Antonio Heberlê é jornalista, professor, doutor em ciências da comunicação, vice-presidente do Centro Internacional de Comunicação e Semiótica-CISECO e pesquisador da Embrapa Café em Brasília. 

 

Bibliografia

AOSFATOS. Disponível em: https://www.aosfatos.org/noticias/em-dois-anos-de-governo-bolsonaro-deu-ao-menos-tres-declaracoes-falsas-ou-distorcidas-por-dia/. Acesso em 06/01/2021.

OBSERVATÓRIODATV. Disponível em: https://observatoriodatv.uol.com.br/noticias/jornalistas-da-globonews-se-desentendem-ao-vivo-execravel. Acesso em: 06/01/2021.

WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação de Massa. Portugal: Presença, 1985.  

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“Acho que os dez anos do Pentálogo traduzem a força proativa da pesquisa universitária conduzida por mestres cientificamente inquietos, mas institucionalmente persistentes, como é o seu caso. O CISECO surfa vitorioso nas dificuldades. Vai continuar ainda que seja grande a onda adversa para a educação e a cultura no momento.”

Muniz Sodré - UFRJ